É difícil para mim falar sobre minha espiritualidade. Sou uma pessoa de firmes convicções que tenta não negociar aquilo em que acredita.
Como uma boa cristã, eu fui batizada, vou à igreja todo domingo, ocasionalmente leio a bíblia, oro e tento ser uma boa pessoa. Claro que esse é um jeito bem simplificado de descrever a minha vida espiritual. A impressão que dá é que estou seguindo uma cartilha para poder chegar ao céu.
Mas deixe-me te contar algumas coisas. Quando eu era criança eu tinha medo do apocalipse. Com 4 anos eu tinha certeza de que se Deus viesse e arrebatasse a igreja, eu ficaria por aqui, seria torturada e teria minha língua arrancada. Então eu ia pra igreja e fazia meu melhor pra não ficar do lado de fora brincando de esconde-esconde com as outras crianças - minha mãe dizia que ficaríamos todos do lado de fora quando a igreja subisse.
Estando um pouco mais velha, ouvi um sermão de um pastor cujos pais - não me recordo bem - sobreviveram ao holocausto. Eu nunca tinha ouvido falar de tamanha barbaridade, e aquilo me assustou. Eu percebi naquele dia que a guerra era cruel. Pensar que pessoas eram maltratadas, mortas, discriminadas e privadas de sua fé me manteve acordada por noites a fio. Eu temia o dia em que isso acontecesse de novo, dessa vez com a minha geração.
Depois de um tempo, meu temor de uma terceira guerra mundial foi substituído por um cd de rap evangélico que meu irmão tinha comprado e não parava de escutar. O nome do grupo era Apocalipse 16. A primeira faixa do cd era uma introdução em que um homem estava morrendo do que hoje entendo ser uma overdose, e então começa a ouvir a voz do próprio diabo tentando negociar em troca de sua alma. Uma voz demoníaca saltava dos auto-falantes e me aterrorizava. Eu tapava meus ouvidos desesperada enquanto David, meu irmão, aumentava o volume só para me provocar. O resultado disso foram noites sem dormir, ajoelhada no meu quarto orando e pedindo para que Deus não me deixasse ir para o inferno.
Em alguns dias eu tentava ser excelente: não reclamava quando minha mãe me pedia para ajudá-la a limpar a casa, me oferecia para lavar a louça, até tentava ler a bíblia - embora não entendesse quase nada. Mas ser perfeitinha era difícil. Eu ainda brigava com meus irmãos, respondia minha mãe com malcriação e ficava do lado de fora na hora do culto.
Minha infância na igreja foi baseada em medo. A verdade era que eu não entendia o que eu estava fazendo ali. Na minha cabeça aquela era apenas uma maneira de garantir que eu não iria para o inferno, mas falhar constantemente nisso me deixou frustrada.
Eu me batizei aos 16, cantei no coral, tentei entender a bíblia e participar dos cultos. Mas acabei saindo da igreja por um tempo.
Aos 18 anos eu quis viver tudo aquilo que não vivi na minha adolescência: as festas, os namorados e a bebida. Eu queria ser descolada ao menos uma vez na vida, e acabei negociando facilmente todos os valores que aprendi quando criança.
Meus relacionamentos foram falhos desde o começo: homens que não queriam nada sério comigo, que ao mesmo tempo que pareciam interessados e carinhosos, me faziam sentir medíocre.
Fiz muita besteira nessa época e sinceramente, teria feito tudo diferente se pudesse voltar no tempo. Sei como geralmente algumas pessoas dizem que devemos viver uma vida sem arrependimentos, mas isso é besteira.
Eu tive problemas com minha identidade. Fiquei deprimida por meses, me isolei de todos os meus amigos e de repente me vi indo para a igreja sozinha. Eu estava destruída e não entendia como ainda conseguia voltar para o mesmo lugar que tanto me fez temer quando mais nova.
Acho que tinha uns 21 anos quando muitas coisas começaram a ficar mais claras para mim. Pela primeira vez eu sentia Deus. Ele falava comigo, não de maneiras convencionais, e até hoje pra mim é difícil explicar como, mas Ele sempre encontra um meio só dele. Eu não parei de sofrer de imediato, mas quanto mais eu ia para a igreja, mais Ele mostrava o quanto se importava e o quanto me amava.
Agora mesmo tento pensar em maneiras mais poéticas de explicar o que foi toda essa experiência, mas a verdade é que ele simplesmente me amou e me explicou tudo aquilo que eu nunca havia entendido. Ele me chamou pra si de uma forma tão irresistível que eu não tive mais medo. Eu não tive medo de ser arrebatada, ou do inferno, ou das vozes demoníacas nos cds e nos discos da xuxa.
Cristo me mostrou quem eu realmente era. E eu não era nada do que as pessoas diziam. Eu não era o resultado de meus relacionamentos falhos, eu não era medíocre e sem valor. Mas sim uma filha amada, que ainda cometeria erros, mas que teria um Pai celestial pra me levantar sempre que eu caísse.
Então sim, eu tenho valores inegociáveis. Também tenho problemas que gostaria que sumissem como num passe de mágica, e nem todos os dias me sinto feliz. Na verdade, minha fase é de tempestades internas que tentam me fazer desistir todos os dias.
Mas ontem eu vi a chuva cair. São Paulo durante o mês de janeiro tem chuvas violentas. O céu escureceu rapidamente, os trovões aumentavam cada vez mais e o vento era implacável. Alguns minutos depois a chuva parou e o céu se abriu num lindo tom azulado.
Eu sei que é clichê dizer que a tempestade vai passar, mas acredito que Deus em toda a sua sabedoria encontra maneiras únicas de nos ministrar durante as fases de lutas das nossas vidas. Ontem essa foi a Sua maneira de falar comigo.
A maior parte do tempo eu tento não ser religiosa. Religião me impede de ter relacionamento de filha com o Pai. Mas eu ainda cometo um montão de erros. O que mais dói é quando o meu afastamento traz à tona uma identidade que não é minha. Quando eu finjo ser aquilo que as pessoas querem que eu seja porque estou cansada de decepcioná-las, porque não quero ser a “certinha” ou a “desviada”.
Quando me rendo aos planos de Deus, tudo simplesmente parece mais leve. Eu não poderia esconder Dele quem eu sou de verdade nem se quisesse. Ele não me cobra perfeição, mas um coração aberto e inclinado à Sua vontade. Ele se apresentou à mim quando eu estava sozinha e perdida no meio da multidão, andou comigo, me contou histórias, me fez rir e chorar de alegria. Ele é o melhor amigo que eu sempre quis.
Eu fui marcada pelo Seu amor, e nunca mais serei a mesma.