sexta-feira, 25 de janeiro de 2019

Notas sobre minha espiritualidade


É difícil para mim falar sobre minha espiritualidade. Sou uma pessoa de firmes convicções que tenta não negociar aquilo em que acredita.
Como uma boa cristã, eu fui batizada, vou à igreja todo domingo, ocasionalmente leio a bíblia, oro e tento ser uma boa pessoa. Claro que esse é um jeito bem simplificado de descrever a minha vida espiritual. A impressão que dá é que estou seguindo uma cartilha para poder chegar ao céu.
Mas deixe-me te contar algumas coisas. Quando eu era criança eu tinha medo do apocalipse. Com 4 anos eu tinha certeza de que se Deus viesse e arrebatasse a igreja, eu ficaria por aqui, seria torturada e teria minha língua arrancada. Então eu ia pra igreja e fazia meu melhor pra não ficar do lado de fora brincando de esconde-esconde com as outras crianças - minha mãe dizia que ficaríamos todos do lado de fora quando a igreja subisse.
Estando um pouco mais velha, ouvi um sermão de um pastor cujos pais - não me recordo bem - sobreviveram ao holocausto. Eu nunca tinha ouvido falar de tamanha barbaridade, e aquilo me assustou. Eu percebi naquele dia que a guerra era cruel. Pensar que pessoas eram maltratadas, mortas, discriminadas e privadas de sua fé me manteve acordada por noites a fio. Eu temia o dia em que isso acontecesse de novo, dessa vez com a minha geração.
Depois de um tempo, meu temor de uma terceira guerra mundial foi substituído por um cd de rap evangélico que meu irmão tinha comprado e não parava de escutar. O nome do grupo era Apocalipse 16. A primeira faixa do cd era uma introdução em que um homem estava morrendo do que hoje entendo ser uma overdose, e então começa a ouvir a voz do próprio diabo tentando negociar em troca de sua alma. Uma voz demoníaca saltava dos auto-falantes e me aterrorizava. Eu tapava meus ouvidos desesperada enquanto David, meu irmão, aumentava o volume só para me provocar. O resultado disso foram noites sem dormir, ajoelhada no meu quarto orando e pedindo para que Deus não me deixasse ir para o inferno.
Em alguns dias eu tentava ser excelente: não reclamava quando minha mãe me pedia para ajudá-la a limpar a casa, me oferecia para lavar a louça, até tentava ler a bíblia - embora não entendesse quase nada. Mas ser perfeitinha era difícil. Eu ainda brigava com meus irmãos, respondia minha mãe com malcriação e ficava do lado de fora na hora do culto.
Minha infância na igreja foi baseada em medo. A verdade era que eu não entendia o que eu estava fazendo ali. Na minha cabeça aquela era apenas uma maneira de garantir que eu não iria para o inferno, mas falhar constantemente nisso me deixou frustrada.
Eu me batizei aos 16, cantei no coral, tentei entender a bíblia e participar dos cultos. Mas acabei saindo da igreja por um tempo.
Aos 18 anos eu quis viver tudo aquilo que não vivi na minha adolescência: as festas, os namorados e a bebida. Eu queria ser descolada ao menos uma vez na vida, e acabei negociando facilmente todos os valores que aprendi quando criança.
Meus relacionamentos foram falhos desde o começo: homens que não queriam nada sério comigo, que ao mesmo tempo que pareciam interessados e carinhosos, me faziam sentir medíocre.
Fiz muita besteira nessa época e sinceramente, teria feito tudo diferente se pudesse voltar no tempo. Sei como geralmente algumas pessoas dizem que devemos viver uma vida sem arrependimentos, mas isso é besteira.
Eu tive problemas com minha identidade. Fiquei deprimida por meses, me isolei de todos os meus amigos e de repente me vi indo para a igreja sozinha. Eu estava destruída e não entendia como ainda conseguia voltar para o mesmo lugar que tanto me fez temer quando mais nova.
Acho que tinha uns 21 anos quando muitas coisas começaram a ficar mais claras para mim. Pela primeira vez eu sentia Deus. Ele falava comigo, não de maneiras convencionais, e até hoje pra mim é difícil explicar como, mas Ele sempre encontra um meio só dele. Eu não parei de sofrer de imediato, mas quanto mais eu ia para a igreja, mais Ele mostrava o quanto se importava e o quanto me amava.
Agora mesmo tento pensar em maneiras mais poéticas de explicar o que foi toda essa experiência, mas a verdade é que ele simplesmente me amou e me explicou tudo aquilo que eu nunca havia entendido. Ele me chamou pra si de uma forma tão irresistível que eu não tive mais medo. Eu não tive medo de ser arrebatada, ou do inferno, ou das vozes demoníacas nos cds e nos discos da xuxa.
Cristo me mostrou quem eu realmente era. E eu não era nada do que as pessoas diziam. Eu não era o resultado de meus relacionamentos falhos, eu não era medíocre e sem valor. Mas sim uma filha amada, que ainda cometeria erros, mas que teria um Pai celestial pra me levantar sempre que eu caísse.
Então sim, eu tenho valores inegociáveis. Também tenho problemas que gostaria que sumissem como num passe de mágica, e nem todos os dias me sinto feliz. Na verdade, minha fase é de tempestades internas que tentam me fazer desistir todos os dias.
Mas ontem eu vi a chuva cair. São Paulo durante o mês de janeiro tem chuvas violentas. O céu escureceu rapidamente, os trovões aumentavam cada vez mais e o vento era implacável. Alguns minutos depois a chuva parou e o céu se abriu num lindo tom azulado.
Eu sei que é clichê dizer que a tempestade vai passar, mas acredito que Deus em toda a sua sabedoria encontra maneiras únicas de nos ministrar durante as fases de lutas das nossas vidas. Ontem essa foi a Sua maneira de falar comigo.
A maior parte do tempo eu tento não ser religiosa. Religião me impede de ter relacionamento de filha com o Pai. Mas eu ainda cometo um montão de erros. O que mais dói é quando o meu afastamento traz à tona uma identidade que não é minha. Quando eu finjo ser aquilo que as pessoas querem que eu seja porque estou cansada de decepcioná-las, porque não quero ser a “certinha” ou a “desviada”.
Quando me rendo aos planos de Deus, tudo simplesmente parece mais leve. Eu não poderia esconder Dele quem eu sou de verdade nem se quisesse. Ele não me cobra perfeição, mas um coração aberto e inclinado à Sua vontade. Ele se apresentou à mim quando eu estava sozinha e perdida no meio da multidão, andou comigo, me contou histórias, me fez rir e chorar de alegria. Ele é o melhor amigo que eu sempre quis.

Eu fui marcada pelo Seu amor, e nunca mais serei a mesma.

quarta-feira, 23 de janeiro de 2019

As dores de crescer



Alessia Cara foi uma bela novidade pra mim no início de 2018.

A primeira vez que ouvi falar dela foi no refeitório da escola de au pairs localizada em Tarrytown, New York. Eu esperava outras garotas que acabara de conhecer quando uma delas, muito gentilmente, disse que eu me parecia muito com a tal da Alessia.

Eu não era muito chegada no cenário atual da música pop e o nome não me era nada familiar. Perguntei tentando ser divertida: “E ela é bonita?”, seguida de um: “Ah com certeza! Ela é linda”.

Fiquei sabendo mais tarde que Alessia Cara é uma cantora canadense, isso meio que já me fez gostar dela - tem algo sobre os canadenses muito interessante que nos faz gostar de todos eles automaticamente. A foto no Google mostrava algumas pequenas semelhanças: o mesmo cabelo cacheado e desgrenhado, os olhos amendoados, a cor da pele. É, até que éramos meio parecidas.

Talvez por isso eu dei uma chance às suas músicas. Gostei de algumas e uma delas me levou a assistir Moana - também descobri que na Itália tiveram que mudar o nome da personagem principal porque era o nome da atriz pornô mais famosa daquelas áreas, mas isso é irrelevante.

A mensagem de suas músicas me lembravam de todas as estrelas Disney que ousavam dizer que tínhamos que nos aceitar como somos. Pensar nisso hoje me faz revirar os olhos considerando em quantas dessas pessoas acabaram em caminhos destrutivos justamente por terem dificuldades em se aceitar. Bem, acho que todos nós temos nossas lutas secretas.

Mas Alessia transmitia essa mensagem de forma autêntica. Ela parecia desconfortável dentro de um padrão midiático, como se estivesse pagando um pequeno preço para poder compartilhar a sua paixão pela música.

Seu último álbum, “The Pains of Growing” é uma obra prima. Em uma entrevista onde ela parecia muito relaxada sem maquiagem, vestindo moletom e com os cabelos presos em um rabo de cavalo simples, ela comentou sobre como foi desafiante escrever sozinha as músicas deste álbum. De fato, no começo da canção que leva o nome do disco uma voz masculina diz: “You’re on your own, kid” (você está por sua conta, garota).

Eu gostaria de poder tatuar no meu corpo a frase: “But still the growing pains they’re keeping me up night” (Mas ainda as dores de crescer me mantém acordada à noite).

Eu li “Sharp objects” de Gillian Flynn, e nós temos diante de nós uma personagem que sente a necessidade de se cortar. Seu corpo é uma tela de palavras aleatórias espalhadas que parecem arder sempre que ela se encontra em algum tipo de situação que lhe traz alguma recordação. Eu nunca fui do tipo que achava automutilação muito atraente, mas minha forma aparentemente saudável de gravar coisas em meu corpo parece ser a tatuagem.

Você nunca me verá com o corpo coberto delas, mas você pode encontrar algumas frases espalhadas estrategicamente por ele. Duas pra ser mais exata.

A primeira nas costas, em meu ombro esquerdo. A frase de “Gravity” de John Mayer repousa sobre minha pele como uma oração: “Keep me where the light is” (me mantenha aonde a luz está). Eu ainda me lembro do primeiro pensamento a passar por minha mente quando decidi fazê-la. John Mayer repetia essa mesma frase na arena do Anhembi no que eu posso dizer que foi o melhor show da minha vida. Eu não queria esquecer de como me senti.

A segunda mais recente foi feita em New Orleans. Sentada numa praça com duas amigas da África do Sul, o calor queimando sob minhas costas e o suor escorrendo por meu rosto, eu disse: “Queria fazer algo diferente pra me lembrar dessa viagem. Tipo, não sei, uma tatuagem?”. Eu sabia que precisaria de uma dose extra de coragem pra isso, mas quando se tem amigas como Ninian e Nadine, você só precisa ir na onda.

Se Nadine não tivesse tirado o celular e procurado imediatamente um estúdio de tatuagem pelas redondezas eu provavelmente teria mudado de ideia 10 minutos depois. Mas não mudei.

Depois de irritar bastante o tatuador com minha falta de certeza a respeito de onde e como seria a tatuagem, eu acabei optando pela primeira opção que ele havia sugerido. Agora, uma nova frase repousava sob minha pele ainda úmida pelo calor: “Be you, bravely”.

Eu sempre optava por fazer tatuagens em lugares difíceis de se ver. Era minha maneira de esquecer delas por um tempo até a surpresa de lembrar que, “Ops, eu tenho uma tatuagem!”. Era também uma forma de evitar me arrepender. Por isso essa havia sido feita em meu braço direito, num ponto em que só poderia ser vista por mim se girasse o braço.

Aquelas marcas eram minha maneira de lembrar que em alguns momentos viver não era sempre uma linha linear entediante. Algumas vezes acabávamos em lugares inusitados com pessoas extraordinárias, e isso valia a pena.

Mas agora eu passava por um momento diferente. A “transição” que eu fazia questão de citar nas minhas cartas de apresentação na tentativa de parecer sedenta por desafios. Eu sentia as dores de crescer todos os dias, e assim como Alessia, elas me mantinham acordada todas as noites.

O problema com esse tipo de dor é que ela é difícil de ser explicada sem que você pareça imaturo. Meu cuidado ao me abrir com pessoas próximas a respeito está sempre em não parecer apavorada - como de fato estou - ou imatura. Não paira sob mim uma síndrome de Peter Pan, mas anseio para que as coisas fossem mais simples.

Estava assistindo “The Good Place” esses dias e eles explicavam algo sobre como funcionava o programa de pontos na série para que os seres humanos pudessem entrar no céu ou serem simplesmente destinados ao inferno. Michael, um dos personagens principais que foi de demônio torturador a amigo e advogado dos humanos perdidos, acabara de descobrir que o sistema de pontos era injusto. Segundo ele, com o passar dos anos o mundo ficava cada vez mais complicado e ser humano era muito mais complexo. Cada escolha que fazíamos continha uma significante quantidade de consequências ruins que nos faziam perder pontos, por mais benéfica que a primeira ação fosse.

Crescer pra mim me parece tão complicado quanto este sistema de pontos. Acho que Alessia falou por todos nós quando disse:

Used monsters as an excuse to lie awake
(usava monstros como desculpa para ficar acordada)
Now the monsters are the ones that I have to face
(agora os monstros são os que eu tenho que encarar)
No band-aids for the growing pains”
(sem band-aids para as dores de crescer)

É, sem band-aids para as dores de crescer.