segunda-feira, 28 de abril de 2014

Fuga


 Manhã de sábado e você levanta devagarzinho. Da minha cama, imagino suas escapadas em outros quartos, o recolher lento das roupas jogadas no chão. A sutileza ao girar a maçaneta da porta e a dancinha de comemoração ao chegar no lado de fora: livre novamente. Os corações partidos do outro lado estavam sempre adormecidos diante de sua partida e o despertar devia ser apenas um longo suspiro de decepção seguido de um aperto no travesseiro e pensamentos perturbadores, que logo seriam abafados pelo sono que voltava.
 Meu pensamento foi muito rápido e eu apenas torci para que, ao vê-lo partir, aquilo significasse que eu poderia detestá-lo em paz. Será que poderia ao menos me poupar de sua dancinha ridícula ao sair do quarto? Meu coração não estava dormente como o das outras.
 Então era isso: o produto final de um joguinho atraente. Você era o mauricinho descolado, preso em ternos de grife e sufocado por suas gravatas sofisticadas. Gel no cabelo, sorriso implacável - um belo sorriso - e simpatia para todos os gostos. Eu era a observadora refreando minha admiração e contendo minha paixão platônica.
 Podíamos ser o clichê de sempre, mas não fomos. De repente, caminhos se cruzam, sorrisos são trocados, conversas banais estimuladas. Seu charme é pretensioso, mas descubro um coração desafetado, carregado de carinho e paixão. Sua paixão me inspira, me faz querer ser melhor. Sua entrega é surpreendente, e receosa como sou, questionável.
 Aqui estou eu em posição de desconfiança mais uma vez. Você é o clássico "bom demais pra ser verdade" e o sonho acabou. 'Olá, realidade. Acho que senti sua falta' - penso de forma melindrosa.
 Só que você ousou chegar mais perto enquanto eu fingia dormir. Seu rosto aproximou-se de meu pescoço, pude sentir sua barba quase crescida e seu aroma da noite anterior. Inalou meu perfume e o toque de seus lábios acariciou meu rosto. Eu arrisquei abrir os olhos para fitá-lo pelo o que poderia ser a última vez, e me peguei presa em seu olhar penetrante.
 Subitamente, suas mãos me alcançam, seu toque me arrepia e seu sorriso atinge os olhos. É você me perguntando: "Posso ficar mais um pouco?". É quando eu percebo que a sua fuga... Sou eu.

segunda-feira, 21 de abril de 2014

Uma boa dose de mim, por favor.


Eu nunca fiz parte da "turma legal" de lugar nenhum. Nem da escola, da igreja, da faculdade ou do inglês. Eu sempre fui a coadjuvante dos cenários da minha vida. Estive nos cantos observando, calculando e pensando em tanta coisa que me tornei muito boa na arte de me desligar do mundo por alguns instantes. Infelizmente, não é o tipo de coisa que faz as pessoas suspirarem de orgulho. Ser meio solitária não é divertido como estar entre a galera das piadinhas e das conversas fiadas, mas é, de certa forma, edificante.
 Assim como ficamos à espera de alguém disposto a nos livrar de nossa solidão, nos ocupamos com tanta atividade mental que nos ligam à questões filosóficas e interiores, carregadas pela busca de sentido, que a ideia de abrir mão deste tipo de personalidade não só é questionável, como também quase impossível.
 Perdi as contas de quantas vezes me esforcei para sufocar quem sou, me escondendo sob uma máscara forçada de extroversão. É claro que detalhes de minha introversão sempre acabam escapando de um jeito ou de outro, e isso ficava nítido quando, diante de uma conversinha fiada sobre o tempo ou música eletrônica, tudo o que eu fazia era soltar um sorriso que não chegava a atingir os meus olhos.
 Meu "sorriso de educação" sempre foi um matador de climas. Era a prova de que o papo não fluiria, a cantada não daria certo ou que o ponto de vista de fulano era carente de argumentos plausíveis - ou era apenas estúpido mesmo.
 Não importa o quanto eu tentasse ser alguém que, de fato, não sou, eu nunca poderia fingir paixão por algo ou alguém. O brilho de fascinação em meus olhos é aquele tipo raro que aparece vez ou outra pra provar que ainda existem coisas capazes de surpreender em um mundo cujas relações tornaram-se tão previsíveis. Um bom filme, com enredo intrigante e um final de fazer os olhos lagrimejarem. Uma frase bem colocada, com um timing perfeito e o impacto necessário para atingir os limites da razão e alcançar o coração. A harmonia saindo do violão ou o frenesi que só o tocar dos corpos, junto com o olho no olho e a química certa entre duas pessoas podem causar. Sabe como é, eventos memoráveis e, ainda que simples, intensos.
 Depois de passar tanto tempo sacrificando minhas vontades numa tentativa falha de ser quem as pessoas esperavam que eu fosse - seja para estar dentro de um padrão aceito socialmente ou para aparentar ter características necessárias para estar em um grupo em particular - eu achei que não seria ruim dar uma chance de ser, pela primeira vez, eu mesma.
 Foram anos me descobrindo e, ao mesmo tempo, me escondendo. É estúpido se apegar à crença de que não gostarão de quem somos antes mesmo que possamos nos dar a oportunidade de nos mostrar. Quando se escolhe ser verdadeiro consigo e com os outros, o preço a ser pago pode ser bem alto, geralmente porque crescemos acreditando que devemos nos moldar a todo tipo de personalidade que nos é imposta.
 Mas essa autenticidade, mesmo sendo tantas vezes dolorosa, nos ajuda a manter quem é verdadeiro por perto. Eu, por exemplo, não sou nem de longe a pessoa mais popular nos grupos sociais em que estou inserida. Também não tento ser. Ao me manter verdadeira, me sinto confortável dentro de certos limites que eu impus a mim mesma, como o de não tentar chamar a atenção para compensar uma carência ou entrar em um confronto para poder sustentar esta mesma tentativa de ser o foco.
 É claro que consegui aprender que passividade não pode ser sempre um fator positivo. Escolhi enfrentar minhas lutas usando o meu melhor como munição ao invés de continuar me escondendo para me manter viva. É importante compreender que não há vida sem um propósito, e não há propósito a ser conquistado sem que demos a cara a tapa algumas vezes.
 Me aceitar me deixou mais leve, me fez perceber que aquele peso sob meus ombros era o acúmulo de diferentes tipos de pessoas que não poderiam ser inseridas a mim, porque meu eu é perfeitamente adaptável àquilo que lhe é benéfico.
 Eu fui a festeira, a namoradeira, a barraqueira, a boazinha, a "aventureira", a mente aberta e a engolidora de sapos. Eu sorri por educação, fingi que estava tudo bem quando nada estava bem, aceitei pontos de vista sem nexo para evitar um conflito declarado e ri diante de palavras que me machucaram como se fosse a piada mais engraçada do mundo. Eu fui forte quando tinha todo o direito de mostrar minhas feridas - só pra provar que eu não sou de ferro, eu também posso sangrar, caramba! - e usei o silêncio como resposta para todos que me fizeram interiorizar minhas tristezas sufocadas.
 Talvez isso soe como um ato de independência exagerado - dane-se - mas neste momento, me isento da responsabilidade de estar em constante acordo com as expectativas do mundo.
 Já me bastam as minhas.


sábado, 5 de abril de 2014

Atrevimento


Eu entendi. Você me deseja. Na verdade, deseja o meu eu secreto. Aquele que eu tinha sufocado por medo de fracassar. O mesmo que me permiti abrir mão por me sentir no direito de passar meses sofrendo por algo que eu nem mesmo lembro mais o que era.
Você deseja a vitalidade e a paixão pela vida que eu havia deixado jogada às traças no porão enquanto me inundava no aparente doce charme da solidão.
Não me leve a mal. É que meus pensamentos eram apenas meus. Não ter que dividi-los foi diferente de não querer fazê-lo. Mas gente como eu escolhe de forma rigorosa quem vai ser digno de escutar tamanha confusão emocional. Minha confusão emocional.
Eu quis sim te poupar de minhas particularidades sombrias, meus medos discretos e minha coragem sufocada. Dividir minha loucura me pareceu o caminho para que pudesse descobrir minhas vulnerabilidades. E eu não queria isso.
Queria que pensasse em mim como uma "pessoa difícil", que não gosta de perder tempo jogando conversa fora. Seria muito mais fácil se me visse como a chata metida à intelectual, que ouve música antiga e lê livros de sociologia só pra se exibir.
Mas você viu minhas particularidades. Você achou bonito o que eu sempre achei ridículo em mim, compreendeu que meus estilos musicais não passavam do meio para que eu chegasse ao meu refúgio da realidade. E por compreender que estava muito difícil para mim sonhar com os pés no chão, conformando-me apenas em manter aqueles deliciosos paraísos em minha imaginação, se dispôs a me provar que viver os sonhos não era uma utopia. Que eu podia - e devia - transformá-los em objetivos.
 Acontece que eu passei a ousar de novo. Eu me atrevo a ser feliz porque você se atreveu a não desistir de mim.
 Sinceramente, obrigada.