quarta-feira, 6 de novembro de 2019

Ser vulnerável

Um comentário aleatório rolou numa conversa de whatsapp, e de repente eu estava falando sobre as minhas resoluções para 2019 que se cumpriram. Me dei conta de que a lista não era lá tão extensa quanto eu pensava.

Ano passado, quando me perguntavam o que eu faria quando voltasse para minha cidade eu dizia, num falso sotaque americano que tentei adquirir, "I'll get a job". Como se arrumar um trabalho fosse a base que sustentaria todo o resto - ou me distrairia de todo resto.

Passado este item, repousava sobre a primeira página de meu caderno de cabeceira a boa e velha promessa de emagrecer 5 kgs, ler mais livros, me exercitar com regularidade e comer melhor. Fico feliz em ter cumprido ao menos alguns itens dessa lista, mas curiosamente eu havia escrito a palavra "vulnerabilidade".

Aquele lapso momentâneo provavelmente surgiu após assistir alguma palestra do TED Talk que me deixou comovida e inspirada. Não que eu tenha permanecido com aquilo na minha cabeça por meses. Acredite, eu esqueci por um bom tempo que queria ser mais vulnerável. Talvez porque vulnerabilidade me lembrasse fraqueza e exposição, coisas que eu sempre evitei mostrar - embora me sentisse assim quase que minha vida toda.

Então veio Brené Brown com "A coragem de ser imperfeito" e, por alguns dias, me senti compreendida e aliviada pela afirmação que, embora óbvia, tende a passar despercebida quase todas as vezes: não dá pra ser perfeito. É impossível passar pela vida sem cometer erros e falhar inúmeras vezes antes de acertar - para só depois falharmos mais uma vez e aprendermos algo novo.

Vulnerabilidade estava na minha lista porque até hoje não consigo esquecer a coordenadora local de au pairs me dizendo: "You need to put yourself outside". Parte porque adorei como soou e parte porque vai contra minha zona de conforto. Porque me confrontou e me desafiou a ousar ser e fazer mais do que eu imaginei que poderia.

A vulnerabilidade também estava lá porque cansei de fingir ser forte o tempo todo. Porque eu não sou fina ou delicada, porque não sou a dama que todos esperavam que eu fosse. Porque eu solto um "Cacete" quando fico com raiva, e porque não consigo controlar minha risada exagerada no meio do expediente.

Estava lá porque ainda evito me envolver demais e acabar com o coração aos pedaços mais uma vez. Estava lá porque ter medo cansa, e o cansaço paralisa a gente.

A vulnerabilidade estava lá porque eu preciso aprender que tudo bem se decepcionar às vezes, e fazer escolhas erradas para só depois aprender qual era a certa. Tudo bem aceitar um emprego mesmo sem saber aonde aquilo vai dar - e felizmente acabar descobrindo que ama o que faz.

Tudo bem se arriscar a ser quem você sempre quis ser, e perceber que a prática te deixa mais habilidosa nessa arte. Tudo bem ser você com suas manias, esquisitices e inseguranças. Gaguejando diante de uma apresentação de trabalho e disfarçando a tremedeira que a ansiedade lhe trouxe.

O segredo - e ironia - da vulnerabilidade é que ela te faz forte.

Começo a dar meus primeiros passos em direção à essa nova maneira de enxergar minha vida. E embora ainda não adore a ideia de sair da minha adorável zona de conforto, sempre acabo me lembrando que o simples levantar já me levou a lugares incríveis.


sexta-feira, 8 de março de 2019

O oponente mais difícil


Eu passei a treinar quase todos os dias. Descobri há algum tempo que essa é a minha maneira de permanecer sã. E ás vezes - quase sempre - os dias se tornam lentos demais, o que no meu caso parece abrir uma brecha para a autosabotagem.

Sempre gostei daquelas sequências cinematográficas em que o personagem principal toma uma decisão e passa os dias seguintes batalhando para alcançar o tão almejado objetivo. As minhas preferidas incluem quase todas as sequências do filme Rocky - exceto Rocky 4, triste demais para meu gosto - e Creed I e II.

Admito que ver Michael B. Jordan suando é um baita de um atrativo que fazem meus olhos brilharem, mas o que mais me chama atenção nestas cenas - além da trilha sonora e dos músculos suados - é a capacidade que o personagem tem de encontrar força aonde parece não haver mais nada. 

Repare que todas essas sequências antecedem momentos de derrota e falta de esperança destruidores. Travamos uma batalha contra nosso mais duro oponente: nós mesmos. A batalha é contra os músculos doloridos, contra as vozes de desistência em nossa cabeça, contra o cansaço físico e psicológico que tenta nos derrubar.

A pessoa que você encara diante do espelho todos os dias é o seu adversário mais difícil. Da mesma maneira que ela irá te incentivar haverá momentos em que ela te fará duvidar de si mesmo, pegar o caminho mais fácil e desistir.

Treinar e escrever são a minha maneira de calar essas vozes. Passar pela vida e tentar aprender algo com meus fracassos enquanto me forço a não desistir, a descobrir minha própria força em meio a dor, especialmente em dias cinzas como esse, é o que me mantém viva e alerta. É o que me mantém aberta ao progresso que só vêm depois de uma sequência de falhas dolorosas.

As batalhas físicas e emocionais de Rocky e Adonis sempre acabam no ringue. As minhas se iniciam na minha mente, e de alguma forma encontram um caminho que passa por aqui. 

E como a minha vida não é nenhum filme com duração de 2h, eu continuo criando minhas próprias sequências de superação - que no momento incluem exageradas repetições de "Formation" (Beyonce) e Drake. 

Cada um faz o que pode, né?


"Você vê esse cara olhando para você? Esse é o seu adversário mais difícil. Creio que esta seja uma verdade no ringue, e também na vida..."

- Rocky em "Creed".


quinta-feira, 7 de março de 2019

"Insecure" é a série que você precisa ver já!


Descobri "Insecure" dois anos atrás enquanto navegava no catálogo da HBO, gratuito por 1 mês na época. Grande privilégio ou grande erro, dependendo do ponto de vista - sempre há o risco de perder sua vida social por algum tempo. A HBO é incrivelmente talentosa quando se trata de séries de tv. Basta ver as produções de "Game of thrones" ou "Big little lies" e você vai entender perfeitamente do que estou falando.

Eu estava numa época de insegurança - jura? Desempregada, presa dentro de casa sem grandes motivações, eu me rendi ao maravilhoso mundo das super produções e passei a acompanhar a primeira temporada da vida de Issa Dee (interpretada pela digníssima Issa Rae) e Molly (a também digníssima Yvonne Orji), duas mulheres negras quase na casa dos 30 lidando com dilemas e, adivinhe, inseguranças da vida.

Não foram poucos os fatores que me fizeram me apaixonar pela série. A história, o elenco, a trilha sonora, a fotografia. Pretty much everything, eu diria.

A série consegue tratar temas como racismo e sexualidade sem parecer politizada, ainda adicionando um humor leve difícil de se encontrar por aí.

Issa trabalha em uma ONG e vive dilemas em seu relacionamento com Lawrence, enquanto isso um ex reaparece pra tornar tudo mais interessante. Molly é uma advogada bem-sucedida que, em sua busca pelo homem certo, sempre acaba em relacionamentos ciladas.

Tudo isso é abordado de forma muito real, nos dando um tempo de séries clichês como "Sexy and the city" e nos transportando para um universo não muito diferente do nosso. Eu particularmente amo a maneira como Issa rima diante do espelho como se conversasse consigo mesma numa tentativa de se entender. Parece muito com meus monólogos mentais diários - claro que me falta o talento para rimar. E Molly? Só a maneira como ela classifica seus affairs de forma tão crítica me faz lembrar de meus próprios padrões inalcançáveis que vez ou outra aparecem pra me deixar em crise.

É muito legal ver tantos temas abordados em uma série que, diferentemente de muitas por aí, centraliza tudo do ponto de vista dos personagens negros e da cultura negra em geral. Dá pra notar a riqueza dos detalhes, do diálogo, do humor que não é escrachado mas que nos pega de surpresa - e sutilmente - no meio dos diálogos.

Gosto da maneira como a narrativa nos leva aos pontos altos e baixos das inseguranças profissionais e pessoais, da capacidade de encontrar forças mesmo se entregando algumas vezes à vulnerabilidade, a liberdade de dizer adeus para situações insustentáveis e a coragem de recomeçar do zero.

As tentativas e erros que moldam o caminho de Issa e Molly podem ser um balde de água fria para os romantizadores de relacionamentos e personagens perfeitos, mas nos aproximam deles de maneira profunda e pessoal, mesmo quando abordam as mais cotidianas situações e temas universais como traição e sexualidade.

A série está em sua 3ª temporada e já tem confirmação para uma 4ª - pra alegria geral! Então, se você curte excelente atuação, qualidade de narrativa, fotografia, figurino excepcional e trilha sonora genial, essa série também é pra você.

Pode confiar.



segunda-feira, 4 de março de 2019

Quando eu fui Tom


Eu não tenho dúvidas de que "500 dias com ela" está no topo da minha lista de filmes favoritos. E embora a história de Tom e Summer não seja necessariamente uma história de amor previsível como todas as que estamos habituados a ver, o filme traz um nível de profundidade que nos faz querer dissecar cada detalhe da nossa própria maneira de se relacionar.

Admito que levei um tempo pra entender sua real interpretação - eu diria alguns anos. E quando finalmente entendi, foi como se meus olhos fossem abertos para coisinhas em mim mesma que eu insistia em continuar ignorando.

Minha raiva pela protagonista Summer era óbvia demais: como alguém podia desprezar um ser tão apaixonado e dedicado como Tom - especialmente quando ele é interpretado por Joseph Gordon-Levitt? 

Mas olhando para a minha própria vida, acredito que entendo de onde vem a ruína que inicia o fim de todo relacionamento. Talvez o primeiro erro seja simplesmente esperar que alguém te complete quando você ainda está buscando entender a si mesmo. O problema desta perspectiva é que em algum ponto a gente compreende que o outro tem que estar ali mais pra complementar do que pra preencher. 

Tom, por exemplo, tinha ideais românticos dignos de um perfeito cavalheiro formado por comédias românticas. Já Summer era independente demais pra se prender a este limitado mundo de faz-de-conta em que o papel dela era o de tornar o protagonista feliz. De seu jeito ela buscava a sua própria felicidade.

O filme é de 2009. Talvez não estivéssemos acostumados o suficiente com a ideia de um romance em que o protagonista não consegue o que quer. Talvez isso fosse ir muito aquém do que esperávamos baseados em nosso histórico de clássicos românticos formado por "Diário de uma paixão" e "Uma linda mulher". 

E foi isso que me fez detestar Summer. Eu não entendia o seu ponto de vista. A sua espontaneidade e honestidade me parecia mais um charme pretensioso do que, sei lá, seu real estado de espírito. O seu ideal de liberdade passava longe do que eu acreditava. Era quase como eu estivesse convencida que o bom da vida era encontrar alguém que te faça feliz e isso já basta. Summer era uma louca.

E eu? Eu era um Tom perambulando pela vida esperando que o afeto que dei fosse me dado de volta, como que por direito. Como uma dívida que devia ser paga devido à minha dedicação e comprometimento.

Se tem uma coisa que aprendi na marra com o passar dos anos é que isso é uma ilusão. Ninguém nos deve nada porque nos deu amor e afeto. Não dá pra pular etapas só porque temos dificuldade em encontrar satisfação primeiramente em nossa própria companhia.

Enquanto achava que Summer era a egoísta da história, percebi que a egoísta fui eu, egoísta foi o Tom, por esperar demais de alguém que estava em sua própria jornada buscando respostas pra si mesmo antes de compartilhar uma vida com outra pessoa. 

A verdade é que ninguém é majoritariamente responsável pela felicidade do outro. A responsabilidade da nossa felicidade começa na gente e o amor se estende para os outros na medida em que deixamos ele crescer dentro de nós ao ponto de ser compartilhado. Não tem a ver apenas com o que eu acho ou o que eu sinto. 

É uma decisão: buscar primeiro em mim aquilo que me sinto impelida a exigir do outro. Amor-próprio. E isso Summer nos ensinou muito bem.


sexta-feira, 25 de janeiro de 2019

Notas sobre minha espiritualidade


É difícil para mim falar sobre minha espiritualidade. Sou uma pessoa de firmes convicções que tenta não negociar aquilo em que acredita.
Como uma boa cristã, eu fui batizada, vou à igreja todo domingo, ocasionalmente leio a bíblia, oro e tento ser uma boa pessoa. Claro que esse é um jeito bem simplificado de descrever a minha vida espiritual. A impressão que dá é que estou seguindo uma cartilha para poder chegar ao céu.
Mas deixe-me te contar algumas coisas. Quando eu era criança eu tinha medo do apocalipse. Com 4 anos eu tinha certeza de que se Deus viesse e arrebatasse a igreja, eu ficaria por aqui, seria torturada e teria minha língua arrancada. Então eu ia pra igreja e fazia meu melhor pra não ficar do lado de fora brincando de esconde-esconde com as outras crianças - minha mãe dizia que ficaríamos todos do lado de fora quando a igreja subisse.
Estando um pouco mais velha, ouvi um sermão de um pastor cujos pais - não me recordo bem - sobreviveram ao holocausto. Eu nunca tinha ouvido falar de tamanha barbaridade, e aquilo me assustou. Eu percebi naquele dia que a guerra era cruel. Pensar que pessoas eram maltratadas, mortas, discriminadas e privadas de sua fé me manteve acordada por noites a fio. Eu temia o dia em que isso acontecesse de novo, dessa vez com a minha geração.
Depois de um tempo, meu temor de uma terceira guerra mundial foi substituído por um cd de rap evangélico que meu irmão tinha comprado e não parava de escutar. O nome do grupo era Apocalipse 16. A primeira faixa do cd era uma introdução em que um homem estava morrendo do que hoje entendo ser uma overdose, e então começa a ouvir a voz do próprio diabo tentando negociar em troca de sua alma. Uma voz demoníaca saltava dos auto-falantes e me aterrorizava. Eu tapava meus ouvidos desesperada enquanto David, meu irmão, aumentava o volume só para me provocar. O resultado disso foram noites sem dormir, ajoelhada no meu quarto orando e pedindo para que Deus não me deixasse ir para o inferno.
Em alguns dias eu tentava ser excelente: não reclamava quando minha mãe me pedia para ajudá-la a limpar a casa, me oferecia para lavar a louça, até tentava ler a bíblia - embora não entendesse quase nada. Mas ser perfeitinha era difícil. Eu ainda brigava com meus irmãos, respondia minha mãe com malcriação e ficava do lado de fora na hora do culto.
Minha infância na igreja foi baseada em medo. A verdade era que eu não entendia o que eu estava fazendo ali. Na minha cabeça aquela era apenas uma maneira de garantir que eu não iria para o inferno, mas falhar constantemente nisso me deixou frustrada.
Eu me batizei aos 16, cantei no coral, tentei entender a bíblia e participar dos cultos. Mas acabei saindo da igreja por um tempo.
Aos 18 anos eu quis viver tudo aquilo que não vivi na minha adolescência: as festas, os namorados e a bebida. Eu queria ser descolada ao menos uma vez na vida, e acabei negociando facilmente todos os valores que aprendi quando criança.
Meus relacionamentos foram falhos desde o começo: homens que não queriam nada sério comigo, que ao mesmo tempo que pareciam interessados e carinhosos, me faziam sentir medíocre.
Fiz muita besteira nessa época e sinceramente, teria feito tudo diferente se pudesse voltar no tempo. Sei como geralmente algumas pessoas dizem que devemos viver uma vida sem arrependimentos, mas isso é besteira.
Eu tive problemas com minha identidade. Fiquei deprimida por meses, me isolei de todos os meus amigos e de repente me vi indo para a igreja sozinha. Eu estava destruída e não entendia como ainda conseguia voltar para o mesmo lugar que tanto me fez temer quando mais nova.
Acho que tinha uns 21 anos quando muitas coisas começaram a ficar mais claras para mim. Pela primeira vez eu sentia Deus. Ele falava comigo, não de maneiras convencionais, e até hoje pra mim é difícil explicar como, mas Ele sempre encontra um meio só dele. Eu não parei de sofrer de imediato, mas quanto mais eu ia para a igreja, mais Ele mostrava o quanto se importava e o quanto me amava.
Agora mesmo tento pensar em maneiras mais poéticas de explicar o que foi toda essa experiência, mas a verdade é que ele simplesmente me amou e me explicou tudo aquilo que eu nunca havia entendido. Ele me chamou pra si de uma forma tão irresistível que eu não tive mais medo. Eu não tive medo de ser arrebatada, ou do inferno, ou das vozes demoníacas nos cds e nos discos da xuxa.
Cristo me mostrou quem eu realmente era. E eu não era nada do que as pessoas diziam. Eu não era o resultado de meus relacionamentos falhos, eu não era medíocre e sem valor. Mas sim uma filha amada, que ainda cometeria erros, mas que teria um Pai celestial pra me levantar sempre que eu caísse.
Então sim, eu tenho valores inegociáveis. Também tenho problemas que gostaria que sumissem como num passe de mágica, e nem todos os dias me sinto feliz. Na verdade, minha fase é de tempestades internas que tentam me fazer desistir todos os dias.
Mas ontem eu vi a chuva cair. São Paulo durante o mês de janeiro tem chuvas violentas. O céu escureceu rapidamente, os trovões aumentavam cada vez mais e o vento era implacável. Alguns minutos depois a chuva parou e o céu se abriu num lindo tom azulado.
Eu sei que é clichê dizer que a tempestade vai passar, mas acredito que Deus em toda a sua sabedoria encontra maneiras únicas de nos ministrar durante as fases de lutas das nossas vidas. Ontem essa foi a Sua maneira de falar comigo.
A maior parte do tempo eu tento não ser religiosa. Religião me impede de ter relacionamento de filha com o Pai. Mas eu ainda cometo um montão de erros. O que mais dói é quando o meu afastamento traz à tona uma identidade que não é minha. Quando eu finjo ser aquilo que as pessoas querem que eu seja porque estou cansada de decepcioná-las, porque não quero ser a “certinha” ou a “desviada”.
Quando me rendo aos planos de Deus, tudo simplesmente parece mais leve. Eu não poderia esconder Dele quem eu sou de verdade nem se quisesse. Ele não me cobra perfeição, mas um coração aberto e inclinado à Sua vontade. Ele se apresentou à mim quando eu estava sozinha e perdida no meio da multidão, andou comigo, me contou histórias, me fez rir e chorar de alegria. Ele é o melhor amigo que eu sempre quis.

Eu fui marcada pelo Seu amor, e nunca mais serei a mesma.

quarta-feira, 23 de janeiro de 2019

As dores de crescer



Alessia Cara foi uma bela novidade pra mim no início de 2018.

A primeira vez que ouvi falar dela foi no refeitório da escola de au pairs localizada em Tarrytown, New York. Eu esperava outras garotas que acabara de conhecer quando uma delas, muito gentilmente, disse que eu me parecia muito com a tal da Alessia.

Eu não era muito chegada no cenário atual da música pop e o nome não me era nada familiar. Perguntei tentando ser divertida: “E ela é bonita?”, seguida de um: “Ah com certeza! Ela é linda”.

Fiquei sabendo mais tarde que Alessia Cara é uma cantora canadense, isso meio que já me fez gostar dela - tem algo sobre os canadenses muito interessante que nos faz gostar de todos eles automaticamente. A foto no Google mostrava algumas pequenas semelhanças: o mesmo cabelo cacheado e desgrenhado, os olhos amendoados, a cor da pele. É, até que éramos meio parecidas.

Talvez por isso eu dei uma chance às suas músicas. Gostei de algumas e uma delas me levou a assistir Moana - também descobri que na Itália tiveram que mudar o nome da personagem principal porque era o nome da atriz pornô mais famosa daquelas áreas, mas isso é irrelevante.

A mensagem de suas músicas me lembravam de todas as estrelas Disney que ousavam dizer que tínhamos que nos aceitar como somos. Pensar nisso hoje me faz revirar os olhos considerando em quantas dessas pessoas acabaram em caminhos destrutivos justamente por terem dificuldades em se aceitar. Bem, acho que todos nós temos nossas lutas secretas.

Mas Alessia transmitia essa mensagem de forma autêntica. Ela parecia desconfortável dentro de um padrão midiático, como se estivesse pagando um pequeno preço para poder compartilhar a sua paixão pela música.

Seu último álbum, “The Pains of Growing” é uma obra prima. Em uma entrevista onde ela parecia muito relaxada sem maquiagem, vestindo moletom e com os cabelos presos em um rabo de cavalo simples, ela comentou sobre como foi desafiante escrever sozinha as músicas deste álbum. De fato, no começo da canção que leva o nome do disco uma voz masculina diz: “You’re on your own, kid” (você está por sua conta, garota).

Eu gostaria de poder tatuar no meu corpo a frase: “But still the growing pains they’re keeping me up night” (Mas ainda as dores de crescer me mantém acordada à noite).

Eu li “Sharp objects” de Gillian Flynn, e nós temos diante de nós uma personagem que sente a necessidade de se cortar. Seu corpo é uma tela de palavras aleatórias espalhadas que parecem arder sempre que ela se encontra em algum tipo de situação que lhe traz alguma recordação. Eu nunca fui do tipo que achava automutilação muito atraente, mas minha forma aparentemente saudável de gravar coisas em meu corpo parece ser a tatuagem.

Você nunca me verá com o corpo coberto delas, mas você pode encontrar algumas frases espalhadas estrategicamente por ele. Duas pra ser mais exata.

A primeira nas costas, em meu ombro esquerdo. A frase de “Gravity” de John Mayer repousa sobre minha pele como uma oração: “Keep me where the light is” (me mantenha aonde a luz está). Eu ainda me lembro do primeiro pensamento a passar por minha mente quando decidi fazê-la. John Mayer repetia essa mesma frase na arena do Anhembi no que eu posso dizer que foi o melhor show da minha vida. Eu não queria esquecer de como me senti.

A segunda mais recente foi feita em New Orleans. Sentada numa praça com duas amigas da África do Sul, o calor queimando sob minhas costas e o suor escorrendo por meu rosto, eu disse: “Queria fazer algo diferente pra me lembrar dessa viagem. Tipo, não sei, uma tatuagem?”. Eu sabia que precisaria de uma dose extra de coragem pra isso, mas quando se tem amigas como Ninian e Nadine, você só precisa ir na onda.

Se Nadine não tivesse tirado o celular e procurado imediatamente um estúdio de tatuagem pelas redondezas eu provavelmente teria mudado de ideia 10 minutos depois. Mas não mudei.

Depois de irritar bastante o tatuador com minha falta de certeza a respeito de onde e como seria a tatuagem, eu acabei optando pela primeira opção que ele havia sugerido. Agora, uma nova frase repousava sob minha pele ainda úmida pelo calor: “Be you, bravely”.

Eu sempre optava por fazer tatuagens em lugares difíceis de se ver. Era minha maneira de esquecer delas por um tempo até a surpresa de lembrar que, “Ops, eu tenho uma tatuagem!”. Era também uma forma de evitar me arrepender. Por isso essa havia sido feita em meu braço direito, num ponto em que só poderia ser vista por mim se girasse o braço.

Aquelas marcas eram minha maneira de lembrar que em alguns momentos viver não era sempre uma linha linear entediante. Algumas vezes acabávamos em lugares inusitados com pessoas extraordinárias, e isso valia a pena.

Mas agora eu passava por um momento diferente. A “transição” que eu fazia questão de citar nas minhas cartas de apresentação na tentativa de parecer sedenta por desafios. Eu sentia as dores de crescer todos os dias, e assim como Alessia, elas me mantinham acordada todas as noites.

O problema com esse tipo de dor é que ela é difícil de ser explicada sem que você pareça imaturo. Meu cuidado ao me abrir com pessoas próximas a respeito está sempre em não parecer apavorada - como de fato estou - ou imatura. Não paira sob mim uma síndrome de Peter Pan, mas anseio para que as coisas fossem mais simples.

Estava assistindo “The Good Place” esses dias e eles explicavam algo sobre como funcionava o programa de pontos na série para que os seres humanos pudessem entrar no céu ou serem simplesmente destinados ao inferno. Michael, um dos personagens principais que foi de demônio torturador a amigo e advogado dos humanos perdidos, acabara de descobrir que o sistema de pontos era injusto. Segundo ele, com o passar dos anos o mundo ficava cada vez mais complicado e ser humano era muito mais complexo. Cada escolha que fazíamos continha uma significante quantidade de consequências ruins que nos faziam perder pontos, por mais benéfica que a primeira ação fosse.

Crescer pra mim me parece tão complicado quanto este sistema de pontos. Acho que Alessia falou por todos nós quando disse:

Used monsters as an excuse to lie awake
(usava monstros como desculpa para ficar acordada)
Now the monsters are the ones that I have to face
(agora os monstros são os que eu tenho que encarar)
No band-aids for the growing pains”
(sem band-aids para as dores de crescer)

É, sem band-aids para as dores de crescer.